sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

120 anos de desinstitucionalização da escravidão no BrasilPassado 120 anos da desinstitucionalização da escravidão no Brasil, é possível dizer que o Estado tem imenso débito com a população negra, depositária dos sonhos e das projeções que moveram a população escravizada, liberta e fugitiva a colocar sua vida em risco pela causa da liberdade.


Estamos muito longe de completar o significado mais profundo das palavras liberdade e abolição, embora institucionalmente a Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, significou um avanço para o Brasil. Enterrou definitivamente um regime sócio-econômico em avançado estágio de putrefação e coroou a luta abolicionista - maior e mais importante exemplo de vitória de movimento de massa popular, iniciado no primeiro repúdio e ação organizada do escravo contra o jugo do senhor, desde os primeiros anos do século 16 e culminou em finais do século 19, somando quase 388 anos de lutas ininterruptas. Os baluartes do processo abolicionista figuram entre negros e brancos, desde Zumbi, Luiza Mahin, Luís Gama e José do Patrocínio a Castro Alves, Antonio Bento, Raul Pompéia, Chiquinha Gonzaga e milhares de heróis e heroínas anônimas que dispuseram de fortuna, segurança física e a própria vida para que não houvesse mais escravidão em terras brasileiras.

A incompletude da abolição legou ao Brasil contemporâneo sérios problemas sociais, oriundos de orientação racista da elite oligarca, responsável pelo projeto que moldou a toda estrutura institucional do Estado nacional republicano. A oligarquia vencedora do jogo político no processo de transição do escravismo ao trabalho livre não permitiu a conclusão da abolição em indenização pecuniária, terras, trabalho, educação, participação política e oportunidade de mobilidade social aos libertados do cativo e seus descendentes. Ao contrário, os poderosos cafeicultores paulistas, os coronéis semifeudais, a burguesia nacional dezenovista e sua geração imediata, através do Estado empreenderam uma política de profunda marginalização e genocídio do elemento negro, negando-lhe direitos sociais básicos, com uso de extremada violência física e investindo fartos recursos na imigração européia. O negro pertencia a um extrato social que deveria ser extinto, pois, segundo os donos do poder, expressava a inferioridade e incapacidade do Brasil civilizar-se, não estava apto a viver na alvissareira sociedade capitalista.

Acumulamos vergonhosas desigualdades políticas, econômicas e educacionais entre negros e brancos, conforme dados oficiais do IBGE e estudos do IPEA; temos profundas desigualdades regionais, os estados mais pobres são os demograficamente mais negros e indígenas; vivemos sob o domínio de uma elite racista, gananciosa, violenta, lacaia do imperialismo estrangeiro, campeã em concentração de renda; uma classe média egoísta, reacionária, silenciosa ante o racismo, mas que resiste com veemência qualquer sinalização de políticas públicas que promovam a população pobre e negra, preocupada em salvaguardar seu privilégio; grande parte da classe política nacional está sob o jugo de caciques regionais, burgueses oportunistas mergulhados em cobiças, comprometidos com interesses inconfessáveis e distantes dos anseios da coletividade. A iniqüidade do racismo perdura, estabelece o grau de oportunidade e status social, segundo a cor da pele e descendência.

Por outro lado, passados 120 anos da desinstitucionalização da escravidão no Brasil, também, é possível dizer que o forte e bravo povo brasileiro tem acumulado vitórias com alto grau de perenidade para promoção da igualdade econômica e social entre negros e brancos, no aprofundamento da democracia e na imposição de um projeto da classe trabalhadora. Vitórias acumuladas na luta política do movimento negro e popular que, objetivamente, não tem permitido a aplicação integral de um projeto racista, conservador e reacionário para o Brasil – hoje representado pelos defensores do neoliberalismo. A luta contra o racismo está num patamar mais elevado, posicionamentos declaradamente racistas não tem sustentação de ordem filosófica, moral, social e política, a sociedade brasileira repudia – a exemplo da infeliz declaração do então Coordenador do Curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia – UFBA, quando indagado sobre a razão da baixa média na notas dos alunos baianos.

Consolidamos um ordenamento jurídico anti-racista que criminaliza a prática do racismo, preconceito e discriminação racial e nos associamos a todas as Declarações Internacionais em defesa dos Direitos da Pessoa Humana, contra o racismo, discriminação racial ou de gênero. Pautamos o Poder Legislativo em todas as esferas com projetos de valorização e promoção social da população negra. Desmistificamos a falsa democracia racial, impomos ao Estado brasileiro o reconhecimento da existência e incidência negativa do racismo sobre a população negra no Brasil. Instituímos nos âmbitos das administrações públicas nos municípios, estados e união estruturas voltadas ao combate do racismo e promoção da igualdade social entre brancos, negros e índios. Investimos na educação problematizando a aplicação de um currículo essencialmente eurocêntrico; viabilizando o acesso da juventude negra nas universidades através dos cursinhos pré-vestibulares, cotas e Pró-Uni – campo em que enfrentamos fortíssima resistência. Aumentamos a presença do negro em diversos espaços antes negados – alto escalão da República e no Poder Executivo, na Alta Corte e outros espaços importantes do Judiciário, na televisão, no comando dos partidos políticos, dos sindicatos, etc.

Em ritmo lento estamos mudando o Brasil, a despeito do vaticínio contrário dos reacionários representados pelos que entregaram, no dia 30 de abril, ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, um manifesto com um sugestivo e hipócrita título: "113 Cidadãos Anti-Racistas Contra as Leis Raciais", cujo objetivo é de impedir a implantação de qualquer política que resgate a dívida do país com a população negra, reconcilie a nação reparando os graves erros do passado. Essas mudanças são integradoras devem ser aprofundadas e intensificadas, pois unirão a coletividade étnica nacional, romperão a trava moral que oblitera a grandeza e impede o desenvolvimento do país. O Brasil tem jeito, seremos um país próspero na medida em que destravarmos um dos principais motivos de nosso atraso: o desperdício de talentos que o racismo produz.

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